Detalhe da casa de Santiago, La Chascona. A construção foi crescendo morro acima e também para os lados
Além da morada em Santiago, capital do país, Neruda construiu outras casas em Valparaíso e Isla Negra, ambas no litoral. O mar o atraía tanto que ele se dizia capitão e os lugares onde morou sempre tiveram vários elementos remetendo ao oceano. Chegam a ter formas que lembram as de um barco.
Casa La Sebastiana, em Valparaíso. Lembra ou não um barco? Os andares inferiores pertenciam a um casal de amigos e os três mais altos, a Neruda e Matilde. De lá de cima ele via o porto da cidade.
Casa de Isla Negra. É a mais espalhada no terreno, comprida e estreita: “Como o Chile”, dizia o poeta.
Neruda construía suas casas aos poucos. Conforme sentia a necessidade de as ampliar, chamava de volta os arquitetos e fazia seus pedidos. Pedidos estes que nem sempre eram convencionais. Uma sala com uma janela em determinada posição, uma saleta para colocar uma mesa feita a partir de um leme de barco, um espaço para organizar alguma de suas coleções. E por falar em coleções, Neruda tinha várias: cachimbos, borboletas, besouros, barquinhos, garrafas e carrancas, aquelas esculturas de madeira usadas na proa de barcos, que em espanhol são chamadas de mascarón.
Coleção de garrafas no bar da Casa de Isla Negra
Fico imaginando quão ensandecidos Neruda devia deixar os arquitetos! Em La Chascona, o endereço de Santiago, o poeta simplesmente deu ordem aos construtores de girar a planta baixa no terreno. De modo que as janelas se voltassem para os Andes e não para a melhor insolação, como previa o projeto. Em Isla Negra, ele mandou fazer um ambiente com cara de estábulo para acolher uma escultura de cavalo – em tamanho natural –, que era o símbolo de uma loja por ele muito frequentada quando era criança. Décadas depois, o poeta soube que a loja havia se incendiado e que o dono estava leiloando o cavalo, único item que salvara das chamas. Neruda arrematou-o e fez uma festa para receber o “animal” em casa.
O bloco com parede de pedras e porta de estábulo foi construído na Casa de Isla Negra para receber a escultura de um cavalo em tamanho natural
Infelizmente não é permitido fotografar o interior das casas do poeta, por isso as imagens que você vê aqui são somente da área externa. Mas, graças a algumas enormes janelas, é possível vislumbrar um pouco da decoração totalmente peculiar para a época. Uma mistura de objetos vindos dos vários lugares do mundo em que Neruda viveu – ora como cônsul ou embaixador, ora como exilado político. Ou que visitou, como China, México, Mianmar, Cingapura, Espanha, Itália e muitos outros. Foi só no continente africano ele não colocou os pés.
Bar da casa La Chascona, visto de fora.
É interessante notar como, nos três endereços, a sala de jantar sempre tem uma mesa bem grande. O poeta prezava a gastronomia e mais ainda as refeições compartilhadas entre amigos. As taças são quase sempre vermelhas ou verdes. Essas cores, segundo Neruda, davam um gosto melhor à água. O vidro colorido também era imprescindível em portas e janelas aqui e ali: o morador gostava de observar o mar através dos vitrais de diferentes tons.
Todas as casas de Neruda têm ao menos um bar: este é o de Isla Negra. Repare no mascarón de mulher e no sapato gigante ao lado dela
Detalhe do balcão do bar. Notou as palavras gravadas no madeiramento do forro? São nomes de alguns dos amigos que frequentavam a casa
Texto nenhum – nem fotos, a bem da verdade – são capazes de transmitir o que são essas três casas. Mas uma coisa é certa: elas são completamente autorais. E o autor não é nenhum arquiteto ou designer de interiores. O autor é Neruda. Nelas ele imprimiu toda a sua personalidade, seu romantismo, sua história, sua forma poética de enxergar as pessoas e o mundo. E seu amor por sua última mulher, Matilde Urrutia, para quem ele fez a casa de Santiago antes mesmo de com ela decidir viver.
Parte da fachada da Casa de Isla Negra, com a coleção de garrafas em evidência
Para quem gosta da obra de Neruda, visitar suas casas é se apaixonar ainda mais pela poesia e pelo poeta. E, para quem o desconhece, é a oportunidade de descobrir uma emoção forte, traduzida em pedra, ferro, lajotas, móveis e objetos sem fim.